domingo, 24 de fevereiro de 2008

— Dá-me, Senhor, dessa água!

Era um encontro de jovens em Agosto. Em Agosto os jovens costumam encontrar-se na praia, ou em passeios de inter-rail. Poucos vão até um convento... O lugar do encontro era em Segóvia, no convento que São João da Cruz construiu e agora guarda os seus ossos pequeninos.
Foi no dia 13 ou 14 de há alguns anos atrás.
Ali os dias são quentíssimos, a paisagem é de restolho ressequido; ouvem-se corvos ou gralhas todo o dia voando e grasnando por cima da Igreja de Nossa Senhora da Fuencisla. Estes são tantos e tão insistentes que quando chega a noite e se calam, nós serenamos e sentimo-nos melhor. Em chegada a noite também ficamos melhor porque a temperatura desce e o ambiente fica mais fresco. Durante o dia conseguimos sentir-nos bem, mas é preciso evitar aquele sol agreste e ficar dentro das grossas paredes do Convento de São João da Cruz. Elas transmitem‑nos paz, devolvem-nos os ecos longínquos dos passos do nosso Santo Padre e defendem-nos do calor intempestivo que se faz sentir no coração da alta meseta ibérica.
Foi, pois, ali, à sombra da memória de São João da Cruz e na frescura daquele convento que alguns jovens portugueses e outros tantos espanhóis fizemos um encontro. Nesse dia de que quero falar abandonámos o convento pela manhã enquanto o sol era meigo e não ameaçava esturricar ninguém. Calcorreamos caminhos de pó durante uma caminhada ligeira e silenciosa por entre restos de searas, de campos enormes, amarelecidos e barrentos que se estendiam por horizontes vastíssimos. Parámos bem antes do meio-dia, bem antes do sol queimar. Parámos sem termos visto vivalma e sob as únicas árvores que se viam em muitos quilómetros em volta.
Antes de merecermos almoçar um papo seco com um chouriço de peles duras, ficamos reunidos à volta dos textos de São João da Cruz.
Passámos ali a tarde, e nem havia como sair, pois quem abandonasse a protecção das árvores logo sentia a ameaça dos raios do sol atingindo‑nos como setas. Chegamos a casa cansados e suados, com os corpos a suspirar por um banho.
Antes da ceia que é lá pelas nove da noite (!) estava prevista uma hora de oração. E lá fomos. No meio da frescura da capela estava uma vela no chão e ao lado, ligeiramente mais alta, uma tina de água límpida e fresca.
Quero lembrar que entre nós havia um basco ou catalão, não me lembro, de 17 anos, que ninguém sabia ao que viera. Estava ali tão deslocado como um peixe a apanhar banhos de sol. Não sabia nada daquilo. Não sabia nem rezar nem o que era um convento nem porque tínhamos de nos juntar a horas certas e fazer tudo junto. Como já não recordo o seu nome chamemos-lhe Rufo. Apesar de destoar Rufo era simpático, embora quase só falasse de bebedeiras de vinho!
Naquela tarde foi também à oração. Como todos nós. A oração começou e foi decorrendo junto ao Poço de Jacob, onde Jesus se encontrou com a Samaritana e lhe pediu de beber; onde Jesus foi remoçando o coração ressequido daquela mulher que Santa Teresa de Jesus diz ser S. Maria Madalena, acabando ela a pedir ao Senhor sem verdadeiramente saber o que pedia:
— Dá-me, Senhor, dessa água!
Era assim entre cânticos, a leitura do Evangelho e dos apelos da nossa Santa Madre a nos abeirarmos da Água Viva, que ia decorrendo a oração. Ali, naquela tarde, se traçava em oração, o itinerário de fé que cada um de nós é chamado a percorrer: Jesus aproxima-se a desejar a fé e o amor de cada um de nós. Depois, no encontro pessoal, é reconhecido e acolhido como a única água que pode matar a nossa sede.
A certa altura, depois duma breve meditação, foi cada um de nós até junto da água e não tinha mais que fazer que aquilo que quisesse fazer: olhar, tocar, santiguar-se... Creio que havia um cântico que cantávamos em castelhano, pedindo como a Samaritana: Dá-me, Senhor, dessa água. O cântico ia decorrendo e a fila aproximava-se lentamente da tina de água e cada um cumpria o ritual pouco mais que sugerido e conforme era capaz. Dali regressávamos aos nossos lugares e calmamente acompanhávamos o cântico em portunhol (língua usada pelos portugueses nestes encontros bilaterais).
Ninguém reparou que Rufo era o último. Mas todos vimos que ficou muito tempo diante da água. E nós cantando. Ficou ali, imóvel, impressionado. Depois, ajoelhado, deu um grande sorvo antes de lavar a cara. O cântico parou mas ali deve ter nascido um santo, pois no restante do encontro o rapaz já não foi mais igual!
(Ignoro o que posteriormente se passou com a vida de Rufo; se ficou a gostar mais de vinho ou de água. Mas o que é certo é que se naquela tarde não foi tocado pela sede de Deus, fomo-lo nós perante o seu gesto tão inesperado.)

(Chama n.º 661 -­ 24 Fevereiro ‘08)

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