domingo, 10 de fevereiro de 2008

Senhor, não nos deixes cair em tentação!


O simbolismo bíblico do número 40 entrou na nossa cultura e deu origem à palavra quarentena. Chamamos quarentena ao espaço de tempo durante o qual alguém presta provas: de saúde, de resistência ou de bom funcionamento.
É isso que a Quaresma é para o cristão: um tempo de prova. Dizemos que é um tempo simbólico, porque na verdade a prova é durante toda a vida, pois durante toda a existência temos de provar que somos verdadeiros discípulos.
O antigo Povo Eleito caminhou pelo deserto durante 40 anos, e durante esse tempo tamanho algumas vezes sucumbiu às tentações que puseram à prova a sua fidelidade a Deus.
Jesus, porém, saiu vitorioso das tentações. Mas diga-se que, quer para Jesus quer para Israel, as tentações não aconteceram apenas num período das suas vidas: foram de toda a vida. Também a Igreja, novo Povo de Israel, é provada ao longo de todo o seu caminhar diário. E o mesmo acontece com a pequena comunidade crente, ou individualmente com cada um de nós. As circunstâncias externas poderão ser muito diferentes umas das outras, mas a qualidade que se deve demonstrar é sempre a mesma: a fidelidade ao seguimento de Jesus.
É sempre sobre o seguimento de Jesus que nós somos provados. Assim, a comunidade cristã não pode conformar-se apenas com uma confissão de fé em Jesus provada no modelo das três tentações. É preciso, antes de tudo, que examine o seu comportamento a fim de corrigir o que nele não é evangélico. Depois é conveniente que olhe e leia o mundo, a fim de perceber os cantos de sereia que podem fazer naufragar a sua fidelidade ao Mestre. Mais ainda: havemos de cuidar dos gestos e atitudes que melhor possam tornar compreensível a mensagem evangélica aos olhos dos nossos contemporâneos.
A fidelidade à Igreja não consiste apenas na escuta e no acolhimento da palavra do Senhor. Ela manifesta-se também na sua transmissão segundo a fórmula mais inteligível.
Para usar uma imagem poderia dizer-se que a Igreja caminha no deserto da sociedade actual como numa solidão povoada de ruídos, de dificuldades e problemas. Isso nem é mau, pois foi o Espírito Santo quem ali a colocou, pelo que o primeiro acto e obediência é resistir à tentação de fugir ao teste, quer escapando-se do mundo quer fechando-se a ele.
A Igreja, a pequena comunidade cristã e o crente individual estão chamados a submeter-se ao auto-julgamento sem respeitos nem cedências a aparências enganosas, mas cara a cara consigo mesmos. Só assim, o deserto em que nos encontramos (o nosso mundo) se converte em lugar de encontro. É assim que a aridez dá flores, o silêncio se converte em mensagem e a solidão em solidariedade e comunhão.
Não devemos esquecer que a prova é sobre o funcionamento e não sobre teorias.
O Tentador sugeriu a Jesus que convertesse pedras em pães; e a resposta de Jesus foi que se o pão é necessário, mais necessário é o sentido da vida. Ou como diz o poeta, a água é importante mas mais importante é perceber para que serve a sede. (Mas, cuidado: vivemos num tempo em que muito se peca por causa da facilidade em se converter pão em pedras: não se destroem alimentos excedentários para se manter os preços, enquanto ao lado são milhares os que morrem de fome? Quando isto acontece é importante que o cristão anuncie o Evangelho, mas é imperioso também que mate a fome.)
A mensagem da segunda tentação tem a ver com o espectacular e o milagroso: Atira-te daí a baixo, porque a Escritura diz que não te acontecerá nada! Mas Jesus responde que Deus respeita a liberdade pessoal. O recurso aos dogmatismos, a propaganda e a disciplina costumam caminhar na direcção contrária. E há quem ache que é assim que se resolvem os problemas sociais. Também Pedro tentou salvar Jesus, e foi chamado de tentador! São muitas as reuniões e documentos solenes onde nos preparamos e formamos, mas no fim acabamos dormindo em todas elas...
Tudo isto será teu se me adorares. Só Deus é merecedor de adoração, respondeu. O consumismo é o deus actual. Consumimos para que a economia vá funcionando; se o não fizermos perdemos as poucas poupanças que temos no Banco. Vamos criando falsas necessidades e esquecemos que não é mais livre quem mais tem, mas quem menos necessita. O nosso tesouro vive em vasos de barro. É uma verdade muito conhecida e muito esquecida. Parece que andamos demasiado esquecidos e distraídos na nossa vida cristã: Senhor, não nos deixes cair em tentação!

(CHAMA nº 659 -­ 10 Fev ’08)

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